Ѽ Capítulo 5: Vertigens  

Posted by: Venenosa

- O que você está fazendo mexendo nas minhas coisas? – Mellanie gritou, desesperada, enquanto se dirigiu para onde a garota estava, triunfante, segurando uma das pílulas.

- Quem é o pai? – Bianca esganiçou, com os olhos negros brilhando e ignorou a raiva da outra.

- Saia já daqui! – Mellanie gritou mais ainda, tirando a pílula à força da mão de Bianca, guardando dentro da caixinha metálica e enfiou tudo na mochila. Suas coisas caíram no trajeto devido à tremedeira das suas mãos. A raiva espumava dentro de seu corpo. O que iria fazer agora? Tinha que evitar de todo o jeito, deveria impedir Bianca de contar qualquer coisa. Estaria perdida se os outros soubessem. Sua mãe nunca iria aceitar uma filha grávida aos 16 anos, seria excluída na escola, teria que interromper os estudos e ele... talvez decidisse, simplesmente, ignorar o filho. E isso não era o pior...

- Eu perguntei quem é o pai, Melzinha! – Bianca sorriu maldosamente – Quem foi que teve a coragem de engravidar uma pseudo-gótica suja como você?

- Cale a boca! – Mellanie perdeu o senso do que era aceitável e o que era digno de expulsão dentro do colégio, avançou em Bianca. Perdeu a cabeça. Não estava raciocinando, não estava pensando. Mellanie, definitivamente, não era uma garota violenta, não tinha qualquer intenção de machucar os outros, mas viu-se, ali, apertando as mãos no pescoço da colega de turma.

Bianca arregalou os olhos, não esperava essa reação da doce garota de olhos quentes e esverdeados. Caiu sobre uma das mesas do ateliê, tentou soltar as mãos de Mel do seu pescoço, já estava ficando sem ar, mas não conseguia. Mellanie agarrou a outra como se dependesse daquilo para viver. Muitos de nós parecemos calmos, serenos e doces, isso, até alguém descobrir um segredo que pode acabar com você. Não, Mellanie não estava preocupada com o que os outros iriam pensar, na verdade, isso era o de menos. O problema é que, dizer em voz alta fazia daquilo uma verdade irreversível, algo que não poderia mais ser escondido... dela mesma. E, pior, dizer a verdade em voz alta implicava, não somente ter que dá-la como um fato, mas também, ter que lidar com ela. Mellanie ainda não decidira o que fazer e era exatamente esse o motivo de estar carregando aquelas pílulas na mochila...

De repente, algo fez Mel acordar, um estalo de consciência antes de um momento que seria decisivo para o desfecho de sua vida dali para frente. Se a gravidez já estava a fazendo equilibrar-se em um muro que separa a clareza da insanidade, como poderia conviver consigo mesma se, além de grávida, fosse uma assassina? “Ela ainda vai acabar com você”, sussurrou uma voz doce dentro de sua cabeça que Mellanie reconheceu como sendo a sua própria. Resolveu ignorá-la e soltou as mãos. Bianca fez força para respirar, ainda estava em choque. Mel afastou-se dela, esparramada no chão do ateliê ao lado de uma mesa caída, e caminhou lentamente até a pia onde se lavavam os pincéis. Abriu a torneira, molhou o rosto. Depois apoiou as duas mãos sobre o granito e deixou a cabeça pender para baixo. Fora por pouco. Estaria ela beirando a loucura?

Bianca levantou-se, passou as mãos sobre o pescoço onde, anteriormente, estavam cravadas as unhas de Mel.Sentou-se em uma das cadeiras.

- Você sabe que posso ferrar você de verdade por causa disso, não sabe? – Disse seriamente.

- O que você quer? – Mel resmungou, ainda olhando pra baixo com as mãos apoiadas na pedra fria.

- Quero saber quem é o pai.

- E o que isso te interessa? – Perguntou a garota, ainda não conseguindo encará-la. Estava tentando convencer Bianca de que essa informação não era nem um pouco relevante. Mel sabia, contudo, que a negra deslumbrante adorava uma fofoca. Tinha a necessidade de saber da vida alheia da mesma maneira que tinha a necessidade de respirar.

- Acho que todos vão gostar de saber como arrumei essas marcas na garganta. – Sorriu ela em resposta, já se controlando do susto.

- Não vão acreditar em você. Todos sabem que você não passa de uma fofoqueira, inventa qualquer boato para poder se promover...

- Ah não? – Ela sorriu maliciosamente – Ah não? Acha mesmo que ninguém sabe que estou de detenção? Acha que o diretor não escreveu por escrito que você deveria me orientar aqui nesta sala, exatamente neste horário? Acha que meu pai, funcionário de alto escalão da polícia, não vai gostar de te colocar na prisão por tentativa de homicídio, Melzinha? Acho que todos vão gostar de saber da história da grávida assassina...

- Já mandei calar a boca! – Mel gritou novamente, mas agora olhando para ela, cheia de raiva. Bianca nem se importou.

- Bem que a Mandy comentou comigo que havia percebido você com uma caixinha diferente... Disse para ela que eram balas, não foi? – Bianca riu. – Sorte que ela é tão ingênua quanto o Sol é minúsculo. Quem diria... Pílulas do dia seguinte... Então, está pensando mesmo em matar seu feto ou já o fez? – Mellanie se aproximou novamente, Bianca afastou-se com cautela com medo de um novo ataque.

- Bianca, você não pode dizer isso pra Mandy, ouviu? Não pode! – Ela arregalou os olhos, deixando o desespero fluir. Bianca franziu o cenho.

- E por que não? – Mel não respondeu. Não deveria ter dito isso. Bianca girou os olhos e se concentrou, tentando resolver o dilema. De repente, uma lâmpada acendeu em sua cabeça. – Por que será que Melzinha não quer que eu conte para a Mandy? Será que é porque a Mandy, certamente, vai contar para a Jacky que, por sua vez, é namorada do Rafa? – Bingo!

- O Rafa não tem nada a ver com isso! – Tentou mentir, mas, na condição em que estava, a mentira foi tão visível quanto luzes na escuridão.

- Então ele não sabe que é o pai? – Tarde demais para disfarçar...

- Já perdi minha paciência com você, Bianca! Some da minha frente! – Mel urrou, a calma descendo ladeira abaixo.

- Estou de detenção, esqueceu?

- Eu escrevo uma carta pro diretor te livrando dela, some! – Abriu a porta do ateliê e observou a garota vestir o casaco, e se certificar que as marcas no pescoço estavam bem escondidas, e ir em direção a porta.

- Era isso mesmo que eu queria. – E foi voltando-se para o corredor, mas, como que se tivesse esquecido algo, apareceu novamente. – Ah! E, não esqueça, você está em minhas mãos.

~ Ѽ ~

- Por que não?

- Porque não vai dar, Jack... Já te expliquei isso!

- Mas eu não entendo! Por que não quer ficar comigo?

- Não é isso, Jack! Você não entende mesmo as coisas! Sempre tem que ser tudo do jeito que você quer! Já disse que não posso!

- E por quê?

- Vou estar com o time de basquete. Já te disse isso! – Rafa já estava perdendo a paciência com a insistência da namorada.

- Essa porcaria de time! Toda vez te tira de mim! – Tentou pegar nas mãos dele, mas ele retirou as mãos de onde estavam e alisou os cabelos.

- Jack, assim não está dando.

- O que quer dizer? – Ela olhou fixamente para ele, realmente não entendendo o que ele queria dizer.

- Eu não sou seu Poodle!

- Claro que não, amor! Poodle é cachorro popular! Você é meu Pug! – Colocou os braços ao redor do pescoço dele e tentou beijá-lo, mas ele afastou-a com cautela.

- É exatamente disso que estou falando. – Disse sério. – Eu não sou propriedade sua. – A garota olhou assustada para o rapaz loiro e atlético, estava esperando o pior. – Acho que devíamos dar um tempo.

- Rafa, diz que você está brincando, bebê! – Jacky descontrolou-se, estava visivelmente abalada com o fim do relacionamento. Ela que adorava tanto namorar o jogador de basquete mais famoso do Marine High e gostava de exibi-lo como se fosse propriedade, pegou-se cheia de sentimentos por ele. Não entendia como uma briga estúpida poderia acabar com tudo desse jeito. Pobrezinha, mal sabia ela que Rafa era, praticamente, uma abelha à procura de algo mais doce, algo doce como mel...

- Jacky, a gente não dá certo. Nossos pais nos apresentaram e ficaram felizes com a nossa união, mas não vejo motivos em continuar se a gente não se gosta.

- Eu amo você! – Ela colocou as mãos sobre as orelhas do rapaz e olhou fixamente em seus olhos. – Ouviu? Eu amo você!

Ele retirou as mãos dela com cuidado e disse baixinho:

- Até mais, Jack.

E saiu, não só partindo um coração que, aos olhos dos outros, parecia frio como gelo, mas, também, entornando o cálice do botulismo.


~ Ѽ ~

- Quero pedir desculpas pelo adiamento do nosso almoço, ontem estive realmente ocupado.

- Tudo bem, papai. – Kadu disse, tentando mostrar entusiasmo no restaurante lotado. – O que tinha a nos comunicar?

- Bem... – Roberto olhou para a esposa sorrindo, preparando-a para dar a boa notícia. – Adquiri um ranário!

- Um o quê? – Kadu perguntou, meio desconcertado. Teria esperado qualquer loucura do pai, menos um aquário gigante para anfíbios. De fato, ele sempre inventava alguma
maluquice a fim de passar o tempo, visto que não fazia nada da vida e só tinha dinheiro pelo fato de ter se casado com a filha de um grande empresário. Esses negócios dele não passavam de puro capricho, bancado com o dinheiro da esposa, claro.

- Um ranário! É genial, filho! O consumo de rãs vem aumentando muito nestes últimos tempos! E eu sempre tive vontade de fazer algo que envolvesse culinária.

- Mas isso não tem nada a ver com culinária!

- Claro que tem, filho! – Falou o homem, animado. – As rãs vão ser vendidas para grandes cadeias de restaurantes de luxo.

- Tá, só espero que não termine como aquela sua outra grande idéia da loja de esquis.

- Amor, seu pai precisa de apoio. Seja bonzinho, Carlos. – A mãe virou-se para o filho gentilmente.

- Eu não poderia saber que o empreendimento do esqui daria tão errado, meu filho!

- Ah claro, porque muita gente no Rio compraria esquis. Do jeito que aqui neva, seria quase como os Alpes suíços. – Kadu disse baixinho, tentando não causar maiores complicações. Não era revoltado e não tinha motivos para entrar em conflito com a família. Aliás, não estava nem ligando. “Fodam-se as rãs”, pensou “Rã boa é rã na panela”. E pôs fim nas preliminares de uma discussão em pleno almoço.

~ Ѽ ~

- Ora ora ora, olha só quem teve a cara lavada de aparecer aqui na instituição novamente! – Ouviu-se o comentário em alto volume de Jaqueline Deville, sentada em uma das mesas da cafeteria do colégio, na manhã seguinte.

Todos pararam de conversar instantaneamente e voltaram-se para a porta onde visualizaram Alex, com a aparência de quem havia sido atropelado logo cedo.
Seus cabelos negros estavam caídos sobre o rosto pálido, tampando ligeiramente as olheiras bastante profundas que se apoderavam de sua face bonita. Carregava a mochila em um só ombro e fez questão de ignorar o comentário da patricinha. Foi passando vagarosamente por entre os alunos que estavam no pátio esperando o início das aulas daquela manhã. Teve que fazer mais esforço ainda para ignorar os comentários que vinham dos “paus mandados”, nenhum deles falou diretamente com Alex. Na certa, estavam com medo de serem as próximas “vítimas”, mas também não faziam esforço algum para diminuir o volume das críticas.

- Assassino, é isso que ele é. – Disse uma das vozes que vinham da multidão.

- Você acha mesmo que ele matou aquela garota? – Comentou uma garota do primeiro ano com a pessoa do lado.

- Como vou saber? Ouvi dizer que está no hospital até agora!

- Que maníaco! Isso é falta de limites!

- Sempre desconfiei que era drogado. – Acusou um desconhecido para um dos amigos parados, em pé, ao seu lado.

- Ele usa drogas?

- No mínimo! Olha para as roupas dele, provavelmente ele cheira até talco.

- Essa pose de idealista nunca me enganou. – Deixou claro uma garota que tomava a lição de fisico-química com o garoto.

- Pobre menina, aceitou uma carona para casa e acabou sendo estuprada e jogada morro abaixo.

Esse último comentário surpreendeu Alex. Ele teve vontade de parar para quebrar a cara do imbecil que se atreveu a suspeitar de seus valores morais e éticos, mas isso o deixara tão surpreso que ficou incapaz de agir. É lógico que já sabia que as pessoas o taxavam de assassino, mas essa história do estupro ultrapassou todos os limites. Alex não sabia quem inventara esse boato ridículo, mas jurou a si mesmo que a vingança seria cravada como espada em pedra.

~ Ѽ ~

Mel sentou-se no depósito do ateliê, estava mais calma agora. Poderia pensar com clareza o que deveria fazer. Obviamente, a situação estava indo de mal a pior, mas teria que arranjar um jeito de sair perdendo o mínimo possível. "Dentre os males, o menor" constatou.

Ficou muito tempo trancada na pequena sala pensando as possibilidades. O que seria pior? Mandy ficar sabendo de tudo pela Bianca e depois contar a Jacky que saberia na hora que havia sido traída na cara dura. "Isso seria divertido", pensou. Ver a cara furiosa de Jacky frente à traição definitivamente era um ponto a favor desse plano. Por outro lado, Rafa também ficaria sabendo do filho e a verdade era que Mel não tinha a mínima idéia de como ele reagiria.

Rafa era um cara bem reservado, muito músculo, pouca fala. Era difícil saber o que ele estava pensando, já que tentava manter sempre a mesma expressão impenetrável e forte, artilheiro do time de basquete, tricampeão estadual de natação, mas nunca um sentimental. Contudo, toda vez que estava ao lado de Mel, sua personalidade mudava completamente. Passava de forte e definido para derretido e sorridente. Ela lembou-se de como se conheceram, um ano atrás.

Era novata no Marine High e todos lhe deram boas-vindas, com exceção do Rafael que fazia questão de fechar a expressão facial a cada vez que ela passava, tentando não ceder a algo que estava queimando por dentro. Mel teve, por muito tempo, medo dele. Sempre frio e impassível, exatamente o contrário de uma artista, como ela. Certo dia, o garoto pegou detenção por quebrar um dos vidros do colégio utilizando uma pedra e teve de cumprir um trabalho ali no departamento de artes, justamente o mesmo que dera um desfecho tão trágico a essa história. Foi então que os dois pegaram-se sozinhos dentro da sala.

O garoto forte e louro tentou, com todas as forças que possuía, continuar distante, um mecanismo de auto-defesa natural, mas viu que aquilo era bem mais forte que qualquer força física. Foi aí que ela percebeu que ele não era nada daquilo que tentava mostrar. Ele até sabia tocar violão e compunha as próprias músicas, ela mostrou seus desenhos, aqueles que nunca mostrava para ninguém, mas ele não era ninguém. Certamente, ele era alguma coisa. Deram certo como nunca tinham visto antes, eram a peça que faltava no quebra-cabeça do outro. Isso até o momento em que uma peça maior e mais cara entrou na jogada. Pobre Melzinha, lembro-me quando descobriu que Rafa era namorado de Jaqueline Deville, uma forte candidata a pessoa mais intragável do Rio de Janeiro, ficou devastada. Um jardim sem flores.

Mel sorriu, era bom recuperar algumas lembranças, talvez Rafa gostasse da notícia. Já havia dito que a amava como nunca amara alguém antes, que seria capaz de fazer qualquer coisa por ela. Essa era uma ótima oportunidade para saber se ele estava mesmo falando sério. Se a amasse mesmo, não a deixaria com um filho. Mel balançou a cabeça como se estivesse espantando uma mosca que pairava no ar. Não poderia usar o filho como objeto, era uma pessoa, não um jogo anti-mentiras. E, afinal, no que diabos estava pensando? Mesmo se Rafa, completamente bipolar e imprevisível, gostasse da idéia do bebê que estava se formando dentro dela, o que iria fazer? Iria ter um filho aos 16 anos? Iria criá-lo? Iria educá-lo? Tinha certeza de que a criança nunca passaria fome, sua família era abastada. Mas uma criança não vive só de bens materiais. Quem iria ensiná-lo a andar? A falar? E, mais importante de tudo, quem iria ensiná-lo sobre valores éticos, sobre como ser um bom cidadão, uma boa pessoa? Quem?

Mel não tinha condições de aceitar essa realidade, tudo poderia parecer muito fofo no começo, mas quem garantiria que seria uma boa mãe? Isso implicaria ser mais do que a pessoa que dá a luz, mas a pessoa que ama o filho mais do que a si mesmo. Não, não estava preparada. O desespero foi tomando conta da cabeça da garota novamente, sentiu um nó na garganta, sua decisão estava tomada. Tinha que decidir-se rápido e acabara de fazê-lo. Abriu a caixinha metálica e, rapidamente, sem nem mesmo pensar novamente engoliu uma das pílulas do dia seguinte. Fazia somente 3 dias desde o ocorrido, "haveria de funcionar", pensou.

Nuvens de insanidade tomaram conta de sua visão, Mel deitou-se de costas no chão do depósito, não estava se sentindo bem. Tentou pensar em algo bom e sua cabeça voltou 3 dias, dias estes que, naquele momento, pareciam séculos atrás.

Lembrou-se de como estava em um jantar oferecido pela Família Medeiros, a família de Vicky, sua melhor amiga. Todos estavam muito entretidos festejando a prosperidade de um novo empreendimento do banco do Sr. Medeiros. A casa de campo da família estava toda decorada, disposta a oferecer aos convidados uma idéia de luxo e, ao mesmo tempo, felicidade. Estavam todos muito ocupados naquele baile de máscaras. Mel sentiu-se sozinha, Vicky estava ocupada demais com Kadu, sabe-se lá fazendo o quê, e não havia ninguém mais jovial para conversar. Decidiu dar um passeio pela mansão, que mais parecia uma mistura de casa de novela com um sítio qualquer. Andou perto da beirada da piscina, vislumbrou o reflexo da lua na água. Ouviu um barulho.

Mellanie olhou para os lados, com medo de que a tivessem visto fugindo da comemoração, não viu ninguém. Percebeu que o barulho vinha da casa de hóspedes no fundo do jardim. Andou vários metros, seguindo a música. Uma luz interrompia a escuridão da noite. Ela se aproximou da varanda iluminada e ficou observando Rafael tocar o violão, sentado no mármore do piso. Ele apoiava o violão em uma das pernas e tinha um pedaço de papel na outra mão. Visivelmente, estava tendo dificuldades para compôr. O vento balançou seus cabelos e fez com que o papel saísse de suas mãos. Rafa olhou para cima e praguejou alto. Desistira. Agora estava tocando uma música conhecida... Por coincidência, uma das que os dois ouviram juntos no aparelho se som do ateliê, quase um ano atrás, no dia da detenção. A garota acompanhou a melodia, ainda espiando escondida atrás de uma pilastra. Começou a cantar.

- When the night has come / Quando já anoiteceu

and the land is dark / E a terra está escura

and the moon is the only light we see / E a Lua é a única luz que vemos

No I won't be afraid, no I won't be afraid / Não, eu não terei medo. Não terei medo

Just as long as you stand by me / Contando que você esteja do meu lado

- And darling darling stand by me! / E amor, amor, fique do meu lado - Rafa começou a cantar também enquanto observava ela sentar-se do seu lado. Abriu um sorriso. E continuaram os dois, fazendo parte do dueto. A música terminou. Ele soltou o violão e não disse nada, continuou a encarar o reflexo da Lua nos olhos verdes da garota. E foi nesses dois segundos de distração que a coisa levou a um caminho que não deveria ser tomado.

Os lábios dos dois entrelaçaram-se na varanda, Rafa puxou-a mais para perto, com toda a paixão reprimida, a proximidade nunca era o bastante. Ela sentou-se no seu colo, amarrando os joelhos no quadril do rapaz, beijava-o intensamente enquanto puxava seus cabelos loiros. Levantaram-se lentamente, sem conseguir se soltarem um do outro. Rafa a pressionou contra a parede, segurou sua cintura com uma das mãos fortes e, com a outra, puxou a maçaneta da porta da casa de hóspedes. Estava destrancada.

Ele segurou-a em seus braços, sem interromper o beijo e jogou-a na cama de lençóis de cetim. Mel separou os lábios, empurrou-o para trás e começou a, lentamente, desabotoar a camiseta enquanto olhava-o fixamente. Ele imitou-a. Retirou a camiseta devagar, deixando os músculos, resultados de horas de treino no time de basquete, a mostra. Não aguentou mais esperar, beijou-a profundamente e tirou os resto de suas roupas. A pele branca da garota brilhou intensamente com o reflexo da luz que vinha da janela grande, ao lado da cama. Ela não era experiente naquilo, mas seus instintos fizeram-na beijar a barriga dele, enquanto suas mãos abriam o zíper da calça jeans que ele usava. Ouviu-o ofegar.

Rafa segurou-a pela cintura novamente e pôs-se em cima dela, olhou-a nos olhos novamente e investiu contra seu corpo, ela gemeu. Ele acelerou a velocidade dos movimentos e percebeu que ela também mexia os quadris, não satisfeita. Beijou o pescoço dela com força, sentiu-a puxando seus cabelos. Mel segurou-se para não gritar, não poderiam ser descobertos... Mas a cada segundo, estava ficando mais difícil manter o silêncio. Arqueou a coluna, tentando se conter, colocou a cabeça para trás e deu um grito silencioso enquanto uma onda fortíssima se arrastava por todo o seu corpo. Naquele momento, até mesmo respirar era uma tarefa árdua.

O garoto gemia baixo acompanhando a respiração rápida e descompassada, olhou a feição da amante, que se contorcia na cama, apertando os lençóis com toda a força. Olhou-a nos olhos, sem parar o movimento que desenvolvia lá embaixo, franziu as sobrancelhas e juntou todas as forças que pôde para dizer:

- Eu te amo.

Mel não conseguiu mais aguentar, a onda intensa que se passava por todo o seu corpo, estava a deixando quase a ponto de perder a consciência. Gritou rapidamente enquanto um sentimento de êxtase a acompanhava. Ao mesmo tempo, sentiu algo quente dentro de si, Rafa também tinha chegado lá.

E, aquilo que parecia ter sido o paraíso há 3 dias, agora, era motivo de lágrimas silenciosas no chão do depósito do ateliê.

~ Ѽ ~

- Veio aqui se pegar com o mauricinho? Se quiser, eu saio. - Alex perguntou, rispidamente, olhando para a figura feminina de cabelos louros e bolsa Gucci, parada, na entrada do beco.

- Não. Estava procurando um lugar pra refletir. - Vicky sentou-se do lado dele, de costas para a parede desgastada do beco ao lado do colégio. - Às vezes eu venho aqui pra, sabe, tentar escapar de tudo aquilo. - Acenou em direção a instituição, filial de uma rede de colégios estrangeiros.

- Hum. - Respondeu ele, encarando o chão. Os cabelos caindo pelo rosto.

- E você? O que faz aqui? - O que Vicky tinha de bonita, tinha de insistente. E de tagarela.

- Nada. - Ela observou que ele segurava um papel e uma caneta. Fez cara de susto.

- Você está se escondendo! - Riu alto. - Quem diria, o virtuoso, grande e cheio de princípios Alex, está no beco se escondendo de um bando de pattys! - Continuou a rir.

- Não estou não! - Agora ele olhava para ela, aborrecido.

- E ainda está escrevendo uma carta pro papai! Que gracinha! - Retirou o papel e a caneta das mãos dele, que tentou mover-se rapidamente para impedí-la, mas foi tarde demais. - "Querido papai, mesmo o senhor sendo um velho bundão sem nenhum senso de moda - ela começava a escrever no papel - devo dizer que ainda estou profundamente revoltado porque não ganhei meu pônei na infância." - Alex tentou tirar o papel das mãos dela, mas ela se levantou e apoiou-se na parede, desviando-se dele para continuar a escrever a carta. - "E mais, ainda exijo todo o tempo em que o senhor não pôde ficar comigo tomando Toddynho vendo as meninas super-poderosas na televisão para ficar roubando os pobres para engordar o bolso dos ricos, fazendo uma imitação muito vagabunda do Robin Hood moderno!"- Alex tentava de todas as formas tirar o papel das mãos da garota, mas não pôde conter o riso. - "Mas no fundo, papito, eu te perdôo porque sei que isso tudo é devido a sua frustrante impotência sexual, que te deixa tão ranzinza quanto a Paris Hilton quando descobre que engordou 500 gramas." - Alex segurou forte em uma das mãos de Vicky e tentava segurar a outra, em que estava a caneta, com a outra mão. Ela fazia movimentos em círculo para desviar-se. No fim, ele conseguiu prender os dois pulsos e pressioná-la contra a parede. Se encararam friamente. Logo após um segundo começaram a rir.

- Ei! - Manifestou a garota, livrando os pulsos e sentando-se novamente. - Por que está rindo? Tenho certeza que a minha carta ficou muito melhor que a sua!

- Tenho que admitir que essa foi boa, meu pai, certamente, ficaria furioso comigo. - Sentou-se e olhou para ela por um instante. - Pensaria que sou gay! - Deu risadas da cara de brava dela. Alex reparou em como ela fazia uma carinha graciosa quando ficava nervosa. - Ah! Fala sério! Meninas super-poderosas? Paris Hilton? - Desatou a rir novamente, ela o acompanhou. dobrou o papel cuidadosamente e estendeu as mãos.

- Guarde. Tenho certeza que isso vai sensibilizar seu pai.

- Sem dúvida alguma. - Ele disse, cordialmente, pegando o papel e guardando-o no bolso.

- E então? Vai me dizer porque está aqui? Ou vou ter que te escrever uma carta também? - Ele sorriu.

- Estou pensando em como surgiram os boatos... Não são verdades, sabe...

- É lógico - e ressaltou bem essa palavra - que veio da TPM.

- TPM?

- Taradas Pistoleiras e Muambeiras. - Ele olhou ainda sem entender. Vicky balançou a cabeça como se fosse óbvio. - Estou falando da Mandy, Jacky e Bianca! Mas é mais provável que, desta vez, tenha sido a Bianca, o pai dela que é da polícia e tal... Mas e o que te importa?

- Como assim? Além do fato disso ser uma mentira grandiosa, uma realidade totalmente distorcida?

- Sim, ué. - Novamente ele não entendeu. Vicky balançou a cabeça novamente, como se fosse um gênio incompreendido. - Será que tenho que te explicar tudo? Alex, você vai ligar para o que aquelas pattys de brechó falam? Aliás, regurgitam? Você sabe a verdade, a idiotinha do vidro sabe a verdade e esse tipo de coisa tem investigação policial, não é porque uma Barbie falsificada espalha para o colégio inteiro que se torna verdade universal.

- Acho que seu único neurônio finalmente funcionou. - Disse ele com uma risada maliciosa, observando as sobrancelhas dela ficarem ameaçadoras na face irritada.

~ Ѽ ~

- Bom, quero que você volte aqui amanhã para acompanharmos você mais de perto.

- Mas o Dr. disse que eu estava bem! - Protestou Milla, ainda enjoada.

- Temos que ver esse problema da sua falha de memória, é algo bem comum quando se bate a cabeça, mas também pode indicar um quadro mais grave. - Ela abriu a boca para reclamar. - Não discuta, são procedimentos de praxe. Regras são regras. - Disse o enfermeiro magricela, que certamente estava tendo um mau dia.

Camilla afastou-se dele e da prancheta e aproximou-se da janela do quarto em que estava. Já tinha vestido suas roupas e arrumado suas coisas. Perguntou por Alex e lhe disseram que ele teve de ir para o colégio. Já era quase hora do almoço, se estivesse certa, ele iria vê-la assim que saísse de lá. Observou os carros que passavam na rua, procurou a moto vermelha. Não estava lá. Esperou por mais algum tempo antes de perceber que estava passando muito mal, ficou tonta. Estremeceu. Fez menção de desmaiar, a dor de cabeça era muito forte. Provavelmente, era por causa da batida. O enfermeiro segurou o braço dela e guiou-a até a cama do quarto.

- Vertigens. - Disse. - É, também, algo normal no seu caso. É melhor ficar paradinha, vou contactar seus pais. - E saiu, antes que ela pudesse proibí-lo de fazer tal coisa.

~ Ѽ ~

Bianca ouviu ruídos, eram vozes vindas da sala de jantar. Já era tarde e todos achavam que estava dormindo. Abriu a porta vagarosamente e espiou o corredor. Ficou atenta a voz de uma mulher, desesperada, soluçando.

- O que vamos fazer agora, Nero? – A voz fina soava familiar.

- Acalme-se, Marta. Sabe como nossa família sempre manteve laços de amizade com a sua.

- Desde que o pai da Amanda se foi, você sabe que as coisas têm piorado para nós!

- Vamos dar um jeito. Sofie e eu vamos fazer o que for necessário para que você e Mandy fiquem bem. – Bianca ouviu a voz calma do pai.

- Mandy nunca vai aceitar isso! – A mulher soluçou ainda mais alto.

- Então ainda não contou para ela?

- Nero... – começou a mulher, com a voz forte – como espera que eu conte para a minha filha, que sempre teve tudo do bom e do melhor, que estamos falidas?

Bianca ouviu o suficiente para fechar a porta e conseguir dormir com os anjos.
~ Ѽ ~

Ѽ Capítulo 4: Vai e vem de informações  

Posted by: Venenosa

- O quê? Como assim? - Espantou-se uma voz ao telefone.

- Estou dizendo! Foi exatamente isso o que aconteceu!

- Você tem certeza?

- É claro! Meu pai é chefe do departamento de investigações policiais!

- Nossa! - A garota ficou boquiaberta, incrédula. - Nunca imaginaria isso! Bi, minha mãe está me chamando para jantar, depois nos falamos mais! Beijos! - Desligou o telefone. Olhou para fora da janela, não viu nada além do jardim deserto. Pegou o telefone novamente, discou outro número. - Amiga, você não vai acreditar no que eu acabei de ficar sabendo!

- O que aconteceu? - Disse a outra, bastante interessada na nova fofoca.

- A Bibi acabou de me contar que aquele garoto novo, sabe, aquele bonitinho...

- Sei sei! - Os hormônios saltitaram com a expectativa de novidades.

- Pois então, ele ofereceu carona para a idiota do vidro ontem e, adivinha só, agora ela está em estado grave no hospital!

- Não! - Os olhos da garota saltaram. - Eles sofreram um acidente? Sempre soube que aquela moto iria dar problemas!

- Que acidente que nada, amiga! Ela é idiota, mas nem tanto! Quando alguém cairia de um penhasco por acidente?

- Penhasco? - A outra levantou-se da cama, assustada.

- Sim.

- Então ela não caiu, ela foi jogada? - A voz ficou esganiçada ao pensar nessa hipótese.

- É o que o pai da Bi desconfia.

- Meu Deus! - O coração batia acelerado. - Querida... hum... Tenho que fazer um dever de matemática, agora que lembrei que tinha deixado pendente, depois conversamos! Kisses. - Desligou o telefone sem nem esperar a resposta da amiga, discou outro número. - Fofa, você não sabe o que acabei de descobrir! Sabe aquela idiota do vidro?

- Sim... Muito burra! Ainda não sei como ela não viu que...

- Ela foi jogada do penhasco pelo cara da Shadow vermelha! - Interrompeu a outra, dizendo tudo sem parar sequer para respirar.

- Mentira! - A menina parou até mesmo de prestar atenção no que estava fazendo. A água que estava despejando em sua xícara de chá, começou a transbordar. - Como assim? Por que ele fez isso?

- Não sei direito, mas dizem que viram os dois passando a tarde inteira juntos...

- Então você acha que... Nossa! - A água começara a molhar a mesa. - Estou chocada! Você tem certeza?

- Sim, claro. Se não, não estaria dizendo! O pai da Bi é da polícia, está investigando o caso.

- Querida, vou terminar de tomar meu chá! Beijinhos coloridos! - Mal desligara o telefone e já estava ligando para a próxima a ser informada de tal escândalo. - Jacky, taca cor que eu estou bege!

- O que aconteceu dessa vez? - Jacky disse, em um tom desinteressado e entediado, mesmo sabendo que suas entranhas estavam saltitantes para saber de um podre novo. Jacky sabia que não era amiga o bastante daquela garota para que ligasse à essa hora da noite por um motivo banal. Deveria ser algo, no mínimo, interessante. Sorriu.

- O cara do corredor...

- Aquele mal vestido?

- Sim, ele mesmo. O que teve aquele conflito com o Rafael esta tarde, o da Shadow vermelha.

Os olhos castanhos de Jacky brilharam, estava mesmo pensando em algo para poder se livrar daquele infeliz. Era inaceitável a maneira com que ele desafiou Rafa hoje, afinal: ele era só um novato. Deveria ter mais respeito com os veteranos da instituição, principalmente com aqueles que usam coroas simbólicas em suas cabeças.

- O que aquele verme fez?

- Matou alguém.

Jacky não percebeu, mas deixou o queixo cair ligeiramente, fazendo com que a boca ficasse um pouco aberta. Segundos depois, recuperou-se. Esperava tudo, uma falência inexplicada, uma homossexualidade revelada, um acidente com aquela moto tosca e, até mesmo, a entrada em um colégio militar, mas homicídio? Era quase como se o natal tivesse chegado mais cedo, muito mais cedo, este ano. Mas teria que checar suas fontes, fofocar não é pecado, acreditar em uma falsa fofoca é. Jacky não era tão ingênua.

- Quem foi a vítima?

- A mongolóide que se chocou contra a porta de vidro.

Seus olhos brilharam novamente. Jacky estava admirada com a maneira com que a situação ficava cada vez melhor. Era um combo natalino. Parecia até que alguma divindade cor-de-rosa lá em cima, tinha resolvido premiá-la por sua boa conduta. "Muito boa conduta!", reforçou sua consciência; a ironia é uma arte. Como o velho ditado dizia: "matou dois coelhos com uma cajadada só" e, neste caso, o verbo foi usado no sentido literal.

- Ela morreu mesmo?

- Não, ainda não. Está gravemente ferida no hospital. - Então a fofoqueira percebeu que já estava se contradizendo. - Mas a intenção de morte foi a mesma! - Emendou, rapidamente, tentando não perder a credibilidade.

- Como foi isso? - Jacky continuava, seriamente, o interrogatório. Precisaria ver se a coisa fazia, ao menos, sentido lógico.

- Passaram a tarde juntos e, depois, ele a jogou do penhasco.
Jacky riu alto. Parecia até uma novela, e das mais vagabundas, por sinal! A imbecil desastrada e inocente que se choca contra uma porta de vidro em seu primeiro dia de aula, o herói playboy metido a rebelde que a defende na frente de todos e, depois de dormir com ela, atira-a de um penhasco na beira do mar. Era uma história interessante a ser contada, sendo verdadeira ou não. Ela não se importava nem um pouco de repassar um boato falso, contanto que soubesse a verdade dos fatos. "Tolo não é aquele que conta, mas sim aquele que acredita", pensou.

- Típico. Realmente, é uma história emocionante. - O sarcasmo imperou em seu tom de voz. - Muito bom, Tina.

A garota que se chamava Tina sorriu aliviada. Era isso mesmo que queria, deixá-la satisfeita. Jacky era uma garota muito influente no colégio, "quem tem influência e popularidade tem tudo" refletiu consigo mesma.

- Achei mesmo que você iria gostar! Escuta, será que posso almoçar com vocês amanhã?

- Claro, claro. - Jacky disse, entediada. Já sabia que isso viria, "são todas iguais" constatou. - Mas, honey, quem foi que te passou essas informações?

- Bem, elas foram passando de telefonemas em telefonemas hoje! - Jacky ficou desapontada, precisava de mais detalhes.

- Mas você não tem idéia de quem foi a fonte original?

- Ah... A Roberta me disse que o pai da Bianca estava investigando o caso.

- Muito bom! Agora, se me dá licença, vou desligar, meu assunto com você já acabou. - Disse, rispidamente, enquanto desligava o telefone, digitou os números que compunham o celular de Bianca, uma de suas "amigas" mais próximas.

- Oi, Bianca? É a Jaqueline...

~ Ѽ ~

Outro dia ensolarado nasce iluminando os palácios da realeza. Mas tenho o pequeno pressentimento de que nem todos tiveram uma tranqüila noite de sono. Alex mirou-se no espelho do banheiro pequeno em que estava e observou as olheiras que brotaram abaixo dos seus olhos, outrora brilhantes e convidativos, agora frios e cansados. Passara a noite no hospital para onde levara Camilla e não conseguira dormir nem um pouquinho.

Abriu a torneira da pia, mas aquela imagem da água escorrendo pela superfície fez com que as lembranças ruins do dia anterior voltassem como pedaços de madeira que se afundam e tornam a alcançar a superfície. Visualizou a imagem de Camilla caindo de uma altura de quase 10 metros e encontrando a água que rugia feroz lá embaixo. Tudo passou muito rápido, Alex não entendia o que poderia ter acontecido naquela fração de segundo entre o tempo em que algo iria, realmente, acontecer entre eles e a queda trágica que estragara tudo. “Ela deve ter caído”, uma voz gritou dentro de sua consciência “escorregou e caiu, foi isso”. Como que por mágica, outra voz ecoou, respondendo a primeira “e se você a empurrou enquanto estava olhando-a nos olhos? E se você foi a causa de tudo isso?”, Alex tampou os ouvidos, mas isso não a impediu: “você pode ser um assassino a essas horas”. Ele foi incapaz de mirar-se no espelho novamente, abriu a porta e saiu.

O acidente em si já era bastante ruim, mas nada ultrapassava o olhar ríspido das enfermeiras que passavam, correndo como loucas, pelo corredor do hospital de luxo para o qual levara Camilla, logo após de tê-la salvado. Não sabia primeiros socorros e nem a maneira certa de fazer respiração boca à boca, então simplesmente aceitara a sua impotência e induziu-a até o hospital. A medida que apareceu no corredor, sentiu os olhos flamejantes das enfermeiras pousarem sobre ele. É claro que pensavam que era um assassino. O pior de tudo é que não poderia culpá-las, afinal, ele mesmo não acreditaria na história que contou aos médicos. O que estaria fazendo com ela, sozinhos, em cima de um penhasco? “Onde eu estava com a cabeça?”, Alex perguntou a si mesmo, agora refletindo o quanto essa idéia era maluca desde o princípio. Contudo, não faria sentido levá-la ao hospital se a tivesse, realmente, empurrado. A não ser que, talvez, fosse para mascarar a própria inocência; era exatamente isso o que todos pareciam constatar.

Mal pôde sentar-se novamente no sofazinho cor de mármore em frente ao quarto em que Milla estava sendo examinada, quando a porta abriu-se e, por ela, entrou um senhor de meia idade. Seus cabelos brancos combinavam com a pele um pouco enrugada sob os olhos, que deslizavam, repetidamente, mirando o papel preso por uma prancheta que estava carregando. Alex levantou-se, foi em direção ao médico, mas não era ele o foco do seu olhar. Viu Milla, desacordada, ao fundo. O doutor virou-se e olhou na direção em que os olhos do jovem estavam apontando, depois o encarou novamente com seus óculos de lentes grossas, que mais pareciam lupas de aumento.

- Sua namorada está, aparentemente, bem. Não teve ferimentos graves e, por sorte, - o tom de voz irônico imperou neste momento - você a salvou a tempo, antes que morresse afogada. O que me preocupa aqui é o fato de ela ainda não ter acordado, vamos fazer mais alguns exames, desta vez, priorizando algum dano que possa ter acontecido na cabeça.

- Mas ela ficará bem? – Perguntou preocupado, mas prestou atenção em outro ponto da fala do médico – E ela não é minha namorada. – Protestou como se estivesse dizendo algo lógico. O médico resolveu ignorar.

- Saberemos a situação assim que concluirmos os exames. Comunicarei assim que tiver algum resultado, Sr. Adamatti.

Após terminar a frase, saiu imediatamente, fechando a porta e caminhando ao longo do corredor, sem deixar Alex perguntar mais nada.

~ Ѽ ~

E era mais um dia chato de aula, mais um dia de desgosto, mais um dia de matéria inútil, mais um dia de professores irritantes e, acima de tudo, mais um dia tendo que aturar vadias recalcadas. Era assim que Vicky via o colegial, a escola servia apenas para encontrar gente que julgava agradável, ou seja, pouquíssimos, ser o holofote do núcleo de fofocas da escola pelas pessoas que a veneravam, conversar com Mellanie, entrar em conflito com Mandy galhofeira e Jacky pérfida e, nos tempos livres, se pegar com Kadu.

Isso, antes de Alex aparecer. Agora, ele estava em outro tópico de atividades, um tópico ainda não nomeado. Mesmo com as duas discussões no primeiro dia em que se conheceram, ele fazia Vicky estremecer a cada vez que pensava em sua figura primorosa. Ela só precisava descobrir se era de raiva ou de outra coisa mais. Chegou ao colégio naquela manhã, ainda com sono. No Marine High, somente o primeiro dia de aula era à tarde, na verdade, nem tinha aula, geralmente era só apresentação, um “aquecimento” para o pior: matéria nova. Contudo, não era com isso que ela estava preocupada. Não tinha visto Alex ainda e isso estava acabando com ela, estava furiosa. Ficava sentando e levantando da cadeira de costume, na mesa de sempre. Realmente, aquilo estava lhe incomodando mais que a estranha expressão de satisfação estampada no rosto de Jacky, que desfilava para cá e para lá puxando o Rafael pelo braço. Só então que Vicky pensou o que deveria estar acontecendo para que Jacky estivesse saltitante. Como Jacky era grudada em Mandy, qualquer postura fora do normal era motivo para se preocupar. Resolveu esperar Mel próximo à entrada do pátio.

Jacky sentou-se no lugar de sempre, entre Mandy e Rafa, em uma das mesinhas que ficavam no pátio e onde os alunos sentavam-se antes de tocar o sinal para começar a aula. Estava contando algo para Mandy, que parecia muito interessada e, de repente, arregalou os olhos azuis deixando-os do tamanho de duas bolas de bilhar. Ao que parecia, não era somente as duas que estavam risonhas naquela manhã, já que todas as pessoas que passavam por Vitória, em pé, perto do portão onde esperava por Mel, soltavam risadinhas e começavam a cochichar com a pessoa do lado, que então, olhava para Vicky e ria ainda mais. Isso estava a irritando ainda mais, apesar de que nada ultrapassava a irritação que a ausência de Alex gerava. O sangue ferveu de ódio ao pensar nele, na verdade, ao pensar em como o próprio namorado Kadu, não a defendera na manhã passada. Como ele tinha a coragem de não apoiar-lhe dessa maneira? Algo interrompeu seus pensamentos.
-Vicky! – Mellanie se aproximava, com os cabelos pretos e brilhantes balançando ao vento. – Como está?

Mais uma vez a voz de Mel quebrara a lógica da concentração nas pessoas que iriam parar na sua lista negra. Geralmente, não daria tanta importância, mas ultimamente estava se pegando tão aérea...

- Vou bem, Mel. – Sorriu com esforço enquanto beijou a amiga no rosto. Reparou na roupa preta que ela estava vestindo. De uns tempos para cá, as roupas de Mel acusavam um estado de luto permanente. Outro grupinho de pessoas passou rindo por ela, perdeu a paciência. – Do que estão rindo, inúteis? – Gritou. Não era do seu feitio gritar assim, pessoas com classe não gritavam dessa maneira, mas aquilo estava deixando os nervos à flor da pele. O grupinho somente riu mais ainda e se afastou. Vicky visualizou Jacky e Mandy olhando em sua direção, agora era Mandy quem contava uma história que parecia ser, no mínimo, hilária, já que Jacky não conseguia tirar o riso estampado na face. – Você sabe o que há com elas? – Olhou para Mel.

- Provavelmente estão comentando sobre o que aconteceu ontem à tarde.

- O que houve? – Vicky perguntou, sem um pingo de interesse. Quis, apenas, tentar se concentrar em outra coisa. Foram conversando à medida que se direcionavam até a costumeira mesa que sempre se sentavam antes do começo das aulas.

- Sabe o Alex? – Mel perguntou, enquanto se sentava no lugar de sempre. A loira levantou a cabeça na hora em que essa palavra foi pronunciada, agora estava em estado de alerta. - A Bianca está espalhando aos quatro ventos que ontem ele saiu com a doidinha do vidro... – Os olhos de Vicky se transformaram em chamas.

- Ótimo! Muito bom mesmo! – Disse rispidamente. - Como se eu me importasse com os namoricos desse daí! – Respondeu, tentando se controlar, se sentando também e cortando ao meio a fala da amiga.

- Vitória, deixa eu contar o resto! Isso não foi tudo! A fofoca que está correndo desde ontem à noite é que ele a levou para o topo de um penhasco perto da praia, a estuprou e depois a empurrou de lá a sangue frio! – Mel resumiu a história, contando como se achasse tudo aquilo um tremendo absurdo.

-Ai, que super! Ela morreu? – Perguntou a loira, nem se preocupando em disfarçar a animação. Não que a otária do vidro fosse concorrência para alguém como ela, mas é melhor prevenir do que remediar. A possibilidade de Alex ser um estuprador não a incomodou muito.

- Que horror, Vi!

- Morreu ou não morreu?

- Não, não, mas ela se machucou! Está no hospital!

- Deveria ter morrido.

- Não fica brincando com uma coisa dessas! – Mel disse seriamente, mas sabendo que a amiga não estava falando sério, Vicky era extremamente malvada quando era favorável a ela, mas certamente não era uma pessoa que chegava ao ponto de querer, realmente, matar alguém. Ao menos, era o que Mellanie pensava.

O sinal, finalmente, tocou. Era a hora de entrar nas salas de aula, elas se levantaram. Vicky observou novamente o salão amplo, Alex não estava ali, provavelmente, não iria vir ao colégio naquela manhã. Tudo o que conseguiu ver foi mais gente rindo ao passar por ela. Mandy, Jacky e Bianca também estavam tendo um momento muito divertido.

- Ai, elas não aprendem mesmo. Do que as víboras pensam que estão rindo?

- Vi, amiga, está sujo... – Mel apontou para a parte de trás da calça de Vitória, que virou o pescoço para poder olhar.

Encarou a gigantesca mancha marrom que cobria toda a parte traseira da calça de marca, olhou para a cadeira que sentara anteriormente, também estava suja. Mais gente deu gargalhadas ao passar por ela.

- Bem que eu percebi que havia um pote de tinta faltando na sala de artes! – Agora tudo fazia sentido para Mellanie, Mandy usara o pano como desculpa para roubar-lhe um item que serviria para pregar uma peça em sua melhor amiga. O ódio correu em suas veias.

- Ei! Na sua casa não tem papel não? – Zombou um desconhecido, enquanto passava por Vicky e Mel, paradas perplexas, de pé, ao lado da entrada. As patricinhas rivais se aproximaram.

- Queridinha, acho que você deveria ter reprovado na hora do piniquinho do jardim de infância! - A voz fina e falsa de Mandy ecoou pela sala. Jacky e Bianca riram ainda mais alto.

- Os únicos dejetos que estou vendo aqui estão saindo pela sua boca! - respondeu Vicky rispidamente, após se recompor do choque inicial.

- Cuidado com esse nervosismo, fofinha! Uma hora pode sofrer um infarto! E não queremos que isso aconteça, não é? – Perguntou Mandy, estendendo seus dedos finos e tocando o queixo de Vicky, como se amansasse um poodle rosa.

- Onde você aprendeu isso? Na cadeia? – Mellanie interrompeu. – Ouvi dizer que é pra lá que mandam as ladras. – O sorriso no rosto de Mandy sumiu.

- Não roubei nada, fofinha. Apenas peguei emprestado sem perguntar. – Tirou o pote de tinta da mochila e arremessou para Mellanie, que pegou firmemente.

- Prisão é coisa de gente da sua laia, pivete. – Jacky também quis participar. – É lá que eles usam essas roupas nada fashion. Aliás, porque está de luto? – Jacky zombou a roupa da outra, rindo.

- Pela morte dos seus neurônios. – Foi a sua vez de retirar o sorriso da face. Se Rafa não tivesse aparecido de repente e pegado em sua mão naquela hora, já teria partido para cima da branquela.

- Vamos. – Rafa puxou Jacky, que mantinha uma face vitoriosa, pelo pulso antes de dar uma última olhada em Mel. Os quatro desapareceram pela escada.

Vicky tirou a jaqueta branca de couro que estava usando e amarrou na cintura com o intuito de esconder a mancha, em seguida, se junta a uma Mel arrasada, na caminhada até a sala de aula.

~ Ѽ ~

Michelle, como de costume, havia arrumado uma maneira de cabular a aula de terça-feira antes do lanche para assistir Daniel, seu irmão, apenas um ano mais velho, treinando com o time de basquete. De cima da arquibancada alternava olhadas entre o jogo e seu celular que carregava nas mãos. É óbvio que não se interessava nem um pouquinho por basquete, o jogo era só uma desculpa para ficar olhando as pernas do irmão. O árbitro apitou o fim da partida.

- Esse Kadu é mesmo um fominha, ha ha ha. - Michelle desceu as escadas da arquibancada, enquanto manteve os olhos no irmão, e não era um olhar comum, era um olhar de desejo. - Achei que essa porcaria não iria terminar nunca!

- Mas terminou... - Daniel sussurrou em sua orelha, mas logo se afastou. Ele, assim como a irmã, também era muito bonito e não era exatamente o adolescente "normalzinho", tinha cabelos descoloridos, num tom que beirava o branco, e em sua orelha esquerda havia um brinco em forma de alfinete. Porém, era bem mais sociável que Michelle. Fazia algum tempo que a irmã estava agindo estranho em relação a ele, acariciando-o intimadamente, dizendo coisas eróticas bem absurdas e seguindo-o até mesmo em seus treinos de basquete. Ele tentava não se importar com isso, mas era jovem e seus hormônios falavam mais alto. Ao mesmo tempo em que tentava afastar-se, queria ver aonde isso iria chegar... Seus pensamentos insanos foram interrompidos pelo barulho da porta do ginásio. Bianca veio saltitante em sua direção:

- Oi amor! - Disse em tom alegre enquanto passava os braços pelos ombros do rapaz, beijando-lhe a boca em seguida.

Michelle chutou uma das mochilas que estavam na arquibancada, acertando as pernas da Bianca, desequilibrando-a e fazendo tropeçar com o salto enorme. Em seguida, pulou os últimos degraus e correu até a porta, batendo-a com violência.

- Dani, sua irmã é louca! – Disse Bianca perplexa. – O que deu nela desta vez?

- Sabe como é a minha irmã... Ciumenta... - Daniel estava com um sorriso extremamente malicioso no rosto, coisa que Bianca parecia não entender.

- Você fica dizendo isso com toda essa calma, mas olha o que ela me fez - Bianca mostrou um pequeno hematoma roxo na perna.

- Não fica assim - disse, docemente, enquanto acariciava o rosto da namorada - Um mês de detenção já foi castigo suficiente, ela vai aprender, meu pai sabe o que faz. Por algum motivo, as palavras de Daniel pareciam soar como mentira, não, não apenas como mentira, pareciam falas pré-decoradas, as quais ele já havia dito várias vezes.

~ Ѽ ~

- O que diabos você estava pensando? O que, afinal de contas, você quer? Me arruinar? Quer acabar conosco? Alex, desta vez você passou dos limites! - Gritou uma voz grossa e firme do outro lado da linha. - Eu sempre soube que você fazia essas coisas para irritar a mim e à sua mãe, mas isso foi além de qualquer barreira! Isso não envolve somente o meu desgaste e irritação, como também meu tempo e minha campanha política! Você pensa o quê? Que meus eleitores vão gostar de saber que meu filho está envolvido em um escândalo?

- Foi um acidente. - Alex respondeu, cansado de tudo.

- Não me interessa se foi ou não um acidente! O fato é que essa é mais uma das suas artimanhas para chamar atenção. Você acha o quê, meu filho? Acha que é bonito chamar atenção por estar sempre envolvido em desastres? Quando saiu aquela notícia no jornal de você andando em uma moto enorme, passando do limite de velocidade e sem ter ao menos carteira, achei que era o mais longe que poderia chegar! Mas isso do acidente foi insanidade! Eu e sua mãe estamos pensando seriamente em te internar!

- Ah, claro! Esse é o único jeito de se verem livres de mim, não é? O único jeito de calar a minha boca! E, aliás, eu estou bem, obrigado por perguntar!

- Não seja melodramático! Já decorei esse seu showzinho pseudo-ético aí! Vou dar um jeito de calar a imprensa sobre esse seu novo "acidente", mas assim que você chegar em casa, você vai aprender a lidar com as conseqüências do que você faz! Eu e sua mãe sempre fomos muito benevolentes ao que diz respeito à sua criação! Se tivéssemos te criado como criamos seus irmãos, você não seria tão vergonhoso!

- Vergonhosos são você e essa sua política demagoga. Se brincar, você até vai usar isso como método de ganhar votos! - Fez um falsete com a voz, imitando o pai - "Olhem! Vejam como eu estou pagando a dívida hospitalar de uma pobrezinha que caiu de um penhasco! Oh! Como sou bondoso!" Não duvido nada que faça isso! E, quer saber? Me espere sentado para voltar para casa!

- O quê? Você ficou louco? - O pai gritou a ponto de o telefone estremecer. - Vai morar onde? Não me faça rir da sua mediocridade, Alex! Quando nos encontrarmos em casa, vamos ter uma conversa sobre limites.

- Me espere sentado, já disse. Só tome cuidado para não se cansar! - Alex retrucou, antes de desligar o telefone na cara do senhor influente que não considerava ser seu pai.

~ Ѽ ~

Mellanie se apressou por entre as pessoas que passavam pelo corredor tentando chegar aos seus destinos, ela estava atrasada. O diretor Nakaíme tinha conversado com ela e dado ordens explícitas que orientasse o trabalho de Bianca, que o recebera como forma de detenção, no departamento de artes. Já estava atrasada, visto que tinha passado muito tempo do intervalo chorando dentro de um dos box do banheiro feminino.

Não queria deixar que os outros a vissem naquele estado. Mellanie nunca gostou de revelar suas fraquezas, ao contrário, sempre zelou para que todos vissem o quanto era forte. Mas aquilo que se passara mais cedo a deixara totalmente sem chão. Era cruel aquilo que teve que presenciar. Rafa pegando na mão de Jacky para evitar que as duas brigassem. Como se houvesse alguma chance, mesmo que remota, que as duas seriam, algum dia, amigas. Ele era simplesmente inacreditável! Como se não bastasse as coisas que havia lhe dito antes de começar as aulas, depois o fato de ter namorada, agora isso! Exibindo o romance, quase esfregando-o na cara dela. Isso não iria ficar assim, "esse jogo é para dois", pensou decidida.

Desviou de um núcleo de alunos que estavam jogando cartas no meio do corredor, mas não conseguiu evitar de pisar na mão de um deles, que estava sentado no chão. Bianca já deveria estar esperando por ela e, certamente, iria reclamar ao diretor do atraso de Mel. Essa era outra que Mel detestava, além de ser enxerida e bisbilhoteira, também estava espalhando fofocas por todo o colégio. Sem contar que era do grupinho de Jacky, a galinha de macumba.

Finalmente, avistou a porta da sala de artes, estava fechada. Girou a maçaneta e entrou na sala colorida. Parou abruptadamente quando percebeu que Bianca estava lá, de pé ao lado dos objetos pessoais de Mellanie, segurando uma pílula branca entre os dedos polegar e indicador. Olhou para Mel, ao mesmo tempo perplexa e sorridente, então disse:

- Ai meu Deus...Você está grávida!

Ѽ Capítulo 3: Veículo de duas rodas  

Posted by: Venenosa

- Você não gosta dos seus pais mesmo! - Milla olhou para a moto, deslumbrada. Não por causa da moto em si, mas por toda essa situação surreal em que estava. Quando poderia imaginar que estaria ali, em plena segunda-feira, saindo mais cedo do colégio mais caro da cidade com um garoto perfeito que tinha uma moto?

- Não é isso... Eu só não gosto de como eles agem, nem como me tratam. - Sorriu de lado - É aí que me divirto deixando-os loucos. - Riu alto.

- Uau... Mas, se não gostam de motos, por que te deram uma?

- Eles não me deram, andei fazendo uns serviços aí e juntei a grana.

Mel imaginou que tipo de "serviços aí" seriam esses que juntariam dinheiro o suficiente para comprar uma moto daquelas. Claro que não era uma moto caríssima, mas também não era do tipo que qualquer garoto de 17 anos poderia comprar apenas com o trabalho de aparar a grama do vizinho em troca de moedas. Já estava com o capacete na mão e pronta para subir no veículo quando ouviram um estrondo vindo de um beco perto de onde a moto estava estacionada. Alex, olhou para os lados, desconfiado.

- Fique aqui. - Disse em tom sério e foi em direção ao beco para checar o que estava originando aquele barulho.

Foi andando passo a passo, cautelosamente, procurando a fonte do estardalhaço. Quando espiou por entre o espaço apertado que havia entre os muros do colégio e o seu vizinho, Alex percebeu que não era "a" fonte, e sim, "as" fontes do barulho.

Lá estavam Vicky e Kadu, entre beijos ardentes e ininterruptos. Kadu espremia a namorada contra a parede e alisava a sua coxa enquanto jogava seus cabelos castanhos e encaracolados no ar, pelo fato de estar se movimentando freneticamente para beijá-la. Vicky estava de olhos fechados e apertava o pescoço e os cabelos do namorado, fato este, que foi o motivo de não ter visto uma lata de lixo vazia que ali estava. Derrubaram a lata no chão, originando o barulho metálico que Alex ouvira.

Vicky abaixou-se, começou a beijar o pescoço de Kadu, desatou o nó da gravata que ele estava usando, beijou sua clavícula, sussurrou coisas em seu ouvido, continuou beijando seu pescoço. Foi aí que Kadu abriu os olhos e se deparou com Alex, observando-os no início do beco. Pigarreou alto. A loira assustou-se, arregalou os olhos em uma velocidade espantosa, viu Alex ali, a poucos metros de distância. Logo a sensação de surpresa foi substituída pela raiva.

Milla não ouviu nada, ficou preocupada e resolveu seguir Alex. Enfiou o rosto na entrada do beco, viu o casal ainda abraçado, porém imóvel, encostado na parede. Nada foi dito. Os quatro se entreolharam. Vicky não sabia se estava com mais raiva por Alex ter interrompido a privacidade com o namorado ou por ele estar acompanhado pela garota do vidro. Seus olhos se transformaram em labaredas de fogo, que chamuscavam em direção ao rebelde. Alex ainda estava surpreso, sempre soube que a "elilte" não estava tão afastada assim do lixo que tanto esnobava, mas precisava mesmo derrubar suas latas? Será que não haveria um local um pouquinho mais "luxuoso" para que o casalzinho ali se entrelaçasse? Alex não sabia o motivo, mas ver Vicky ali, abraçada com aquele cara, estava deixando seus nervos à flor da pele. Milla não percebeu, mas abriu a boca suavemente enquanto intercalava o olhar entre Vicky, descabelada e com o batom borrado, e Kadu, com a gravata amassada e a camisa branca cheia de marcas vermelhas.

Kadu foi o primeiro a se recuperar do choque. É claro que não esperava que uma suburbana e um playboy metido a rebelde atrapalhasse seus momentos íntimos com a sua garota. Ainda mais naquele local, onde ele jurava que os dois nunca seriam flagrados, já que a "nobreza" não era muito fã de locais apertados, úmidos e ocupado por latas da coleta de lixo. Ajeitou a gravata, colocou-se em posição ereta e jogou, para os que estavam em sua frente, o mesmo olhar sereno, passivo e descontraído que sua face já estava tão acostumada. Era o mesmo olhar de um bichinho fofo e puro que estava tentando convencer as pessoas a adotá-lo. Alex foi o primeiro a falar:

- Olha se não é a majestade se misturando com os ratos! - Sorriu torto - Ou pode ser apenas uma comemoração em família. - Sorriu amarelo. Vicky aceitou a provocação.

- O que você está fazendo aqui, rebeldezinho hipócrita? Tenho certeza que está nos criticando, mas veio aqui para fazer a mesma coisa... com ela. - Apontou o dedo fino e branco para Camilla. Alex explodiu por dentro.

- Não sou como você e acho que ela também não é. Não precisamos disso aqui - girou o dedo ao redor do beco - para dar uma pitada de "excentricidade" a um namoro sem graça.

- Se eu te conhecesse mais, afirmaria que está com ciúmes. - A garota sorriu, mas as chamas de ódio em seus olhos continuaram fitando Alex.

- Então que bom que não conhece. - Retrucou ele, duro e frio. - Por que eu teria ciúmes de você? Ainda mais com ele! - Acenou a cabeça para Kadu, que estava com a mesma feição de quem vislumbra um quadro de paisagem sem graça em um museu qualquer. Kadu nem se mexeu, ao contrário, ignorou como se ele nem estivesse ali. Continuou a prestar atenção na corujinha da floresta imaginária que se passava na sua cabeça.

- O que quer dizer com isso, insolente? - Vicky perdera o controle - O Kadu é muito melhor que você, entendeu? MUITO melhor! Pelo menos ele não precisa fingir que não gosta do dinheiro que tem para fazer pose de "rebelde maneiro".

- Sim, tenho certeza que ele adora o dinheiro que tem. Aliás, quantos neurônios ele já conseguiu comprar esse ano? - Alex sorriu torto de novo, Vicky estremeceu. - Acho que faltou uma cota, hein?

- Como se atreve!?! - Vicky urrou de raiva. - Você não sabe com quem está mexendo... - Ameaçou a garota, sem ter o que dizer.

- Ah! Com quem? - Desafiou ele. - Com uma patty que só se importa com quantos sapatos Calvin Klein vai comprar amanhã? - Soltou uma risada alta e debochada.

- Estúpido! Primeiro que Calvin Klein não vende sapatos, vende roupas. Segundo que, para sua sorte, também não vende fucinheira! - Vicky estava histérica. Virou-se para o namorado - Kadu, me defenda!

Kadu estava absorto na floresta imaginária em sua cabeça. Neste momento, o cervo tinha acabado de saudar a raposinha. De repente, uma cobra surgiu por entre as folhagens e sibilou: "Kadu, me defenda! Kadu, faça alguma coisa!". Kadu encarou Vicky, depois encarou Alex. Era claramente mais alto que o outro, poderia dar-lhe uma surra facilmente ou, pelo menos, era o que ele pensava. "Mas por que faria isso?" perguntou a si mesmo. Não iria se meter em problemas por causa dos ataques de histeria de Vicky. Ela se assemelhava mais a um galo de briga que a uma garota, sempre arrumava alguém para implicar por motivos bobos. Tudo bem, o menino tinha sido bem imprudente ao atrapalhar assim o momento quente que estava tendo com a namorada, mas isso não era motivo para criar uma inimizade. "O pai dele pode ser influente." A voz de seu pai soou em sua cabeça. Kadu hesitou. Vicky ainda olhava para ele esperando que fizesse algo. Rafa não estava ali, geralmente, ele, com seus músculos muito mais definidos, ajudava Kadu a impor respeito sobre novatos. Não, definitivamente, não iria entrar em conflitos sozinho por causa de Vicky. Não ligava a mínima se ela tinha problemas com o tal menino mal-vestido. A raposinha começou a cantar. Não tinha nada a ver com a namorada, nem com as brigas dela, muito menos com os sentimentos que ela tinha pelas outras pessoas. "Dane-se" pensou ele, mas disse:

- Vivi, amor da minha vida, coloque a mão na consciência. Ele é só mais um garoto que não sabe como usar uma gravata, olha só a camisa do indivíduo. - Foi a primeira vez que Vicky reparou na camiseta preta com a estampa de uma banda desconhecida que o garoto estava usando. Era tão difícil tirar os olhos do rosto dele e ver o resto do corpo...

- O que tem as minhas roupas? - Perguntou com tom bastante ríspido e bravo. Foi a primeira vez que Alex direcionou a palavra a Kadu.

- Nada, mano. Relaxa! Pense também, vale a pena brigar por uma menininha? Ela se diverte discutindo com os outros e gastando horrores na Sack's com as amigas, dude!

- O que você quer dizer com "menininha"? - Vitória nunca se sentira tão nervosa na vida.

"Opa!" Kadu pensou consigo mesmo. Precisava de uma saída de emergência já. O esquilo se juntou à canção da raposinha. Será que ninguém entendia que ele estava pouco se lixando com a rixa dos dois? Só queria sair dali e voltar para o colégio onde o intervalo já deveria estar acabando. Não era que Kadu se importava, tampouco, com as aulas, mas teria treino de basquete no próximo horário e seria capaz de matar Vicky se ela o fizesse chegar atrasado.

- Meu celular está tocando, com licença!

- O quê? Não ouvi nada! - Gritou Vitória para o namorado, que já se afastava do beco e ia em direção à entrada principal.

- Está no modo silencioso! Senti só o vibra-call! - Gritou ele para a namorada, quando já estava a uma distância segura da mesma. Vislumbrou o olhar letal e irritadíssimo que ela exibia para ele. - Te amo! - Gritou, antes de sumir pelo portão.

~Ѽ~

- Você está atrasado!

Kadu olhou para os lados, não viu mais ninguém.

- O resto do time ainda nem chegou, Rafa! - Pegou uma das bolas de basquete que estava no chão do ginásio e arremessou para o amigo.

- Kadu, você é o capitão, eu sou o vice-capitão. Se quisermos levar o troféu do inter-colegial para casa esse ano, teremos que nos esforçar mais.

- Eu sei, cara... Desculpa. - Rafa arremessou a bola de volta para ele.

- Por que se atrasou?

- Como por quê? Por que mais seria? Vitória, claro.

- Ah! As coisas esquentaram hoje então! - Rafa deu um sorrisinho maligno para o amigo.

- Antes fosse... Estávamos lá, no mesmo lugar de sempre, quando chegou aquele tal de Alex, o novato. Então começaram a brigar e eu caí fora, você sabe como não me importo com as frescuras da Vicky. - Kadu viu o rosto de Rafa ficar fechado. - Qual o problema?

- Quase bati naquele cara hoje. Se não fosse a idiota do vidro de hoje mais cedo, o teria espancado no meio do corredor mesmo. - Kadu riu. Atirou a bola em direção à cesta, marcou o ponto.

- O que ele fez?

- Ia atacar a Mandy quando ela virou-lhe as costas.

- Desde quando você se importa com a Mandy? - Kadu estranhou.

- Ela é a melhor amiga da Jacky que, por sua vez, é minha namorada. - Rafa respondeu, como se fosse uma coisa óbvia.

- Nós dois sabemos o quanto você "ama" a Jaqueline. - Kadu sorriu de lado, mostrando seus dentes branquíssimos. - É quase o mesmo tanto quanto eu amo a Vicky.

- Não gosto de caras que encostam a mão pra fazer mal em mulher. - Kadu olhou para o melhor amigo com uma cara de quem não tinha engolido o argumento. Rafa arremessou a bola, que bateu aro e entrou na cesta. - Tá bom, eu quis impor respeito. Se ele encostar na Mel... Juro que acabo com a raça dele.

- Esquece logo a Mel, mano. Depois do que houve nas férias, ela não vai falar com você tão cedo.

Rafa sentou-se no chão da quadra. Colocou as mãos entre os cabelos louros, sentia-se muito mal. Era um rapaz bonito e forte, mas Mel era seu ponto fraco. Seu namoro com Jacky não passava de pura fachada, não gostava dela nem um pouco. Sua situação era diferente da de Kadu. O amigo não amava a namorada, mas também não sentia repulsa por ela. Sem contar que Kadu se divertia com Vicky, sentía-se atraído, pelo menos, por motivos carnais. Já Rafa... odiava Jacky. Não suportava os assuntos dela, sentia eterno repúdio pela garota e não podia se livrar dela. Jacky o tinha em suas mãos e não iria "libertá-lo" tão cedo.

Rafa era apaixonado por Mel desde o primeiro dia que a viu no ano passado. Já tentara de todas as formas, não conseguia tirá-la da cabeça. Não conseguia. Era obcecado por ela, chegava a ser doentio, chegava a ser assustador. Por ela, era capaz de qualquer coisa, era capaz de matar.

- Não dá.

- Você acha que se eu falar com a Vicky... Sei lá... Pedir para ela conversar com a Mel... Quem sabe ela te perdoa... - Kadu tentou ajudar.

- Não, cara. Deixa pra lá. - Rafa levantou-se e recolheu a bola de basquete novamente. - Vamos nos focar no jogo.

E os dois continuaram a revezar os lances.

~Ѽ~

- Nossa, odeio aquela garota! - Alex esbravejava enquanto tomava um gole da sua bebida.

Milla colocou as mãos sobre as bochechas, não aguentava mais as reclamações de Alex sobre Vicky. No caminho da escola até a lanchonete onde resolveram ir para comer algo, não falou outra coisa senão de Vicky. Milla também não gostava da loura, não depois do que ela havia dito na frente de todos sobre o incidente do vidro, mas Alex já estava exagerando. Já tinha usado todos os xingamentos que conhecia e em todas as combinações possíveis para falar mal da garota. Ignorou todas as vezes que Milla tentou mudar o assunto e sua raiva estava começando a assustá-la.

Não sabia o que de tão ruim Vicky teria feito para que ele a odiasse tanto. Até onde Camilla sabia, ela não tinha feito nada além de chamá-la de estúpida na frente de todos e depois dar uns amassos no namorado na hora do intervalo. Claro, ela também era uma patty do tipo nojentinha e antipática, mas isso também não era motivo para tanto. Olhou para Alex, ainda praguejando. Ele era tão bonito, parecia que tinha sido esculpido por Deuses. Seus cabelos muito pretos e um pouco grandes ficavam ainda mais bonitos do jeito bagunçado que estavam. Não era do tipo bagunçado ruim, eram bagunçados na medida certa. Parecia até que ele havia, cuidadosamente, deslocado alguns fios de lugar para dar aquele visual tão lindo. Os olhos verdes se destacavam na pele branca e pareciam ainda mais penetrantes com a blusa preta que ele estava usando. E, por incrível que pareça, ele ficava ainda mais fofo quando estava nervoso...

- Não pense isso! - A consciência de Milla esbravejou em sua cabeça.

Milla sabia que não deveria pensar assim, mas não conseguia evitar... Sabia muito bem que as chances de que ele retribuísse qualquer sentimento que ela poderia vir a ter por ele eram minúsculas. Ela não via motivos por que alguém se apaixonaria por ela. Não era feia, mas também não era bonita. Não tinha nenhuma habilidade especial e, provavelmente, também não tinha bons assuntos, já que não conseguia fazê-lo parar de falar na outra. Não era rica e, muito menos, tinha uma vida interessante e aventureira para compartilhar. Sentiu-se pequenininha. A única coisa que sabia fazer era tirar fotos aleatórias de coisas que achava que dariam um efeito legal. Sentiu vontade de sumir. Alex percebeu.

- Olha, me desculpa, tá legal? - Pela primeira vez no dia, a feição dura e fria desapareceu do seu rosto. Seus olhos brilharam em um tom quente. - É que eu sou muito explosivo, fico irritado com muita facilidade e você sabe o que eu penso sobre a elite.

- Não, tudo bem... - Milla sorriu. - Você tem razão de se irritar.

- Mas estou te deixando entediada. - Alex estava se esforçando para ser legal. Não era que ele era frio demais para ter sentimentos, é só que havia passado por experiências muito ruins em sua vida que lhe deixaram fechado para o mundo. Como se houvesse uma parede que o separasse do restante das pessoas e elas teriam que escalar grandes alturas para que pudessem conhecê-lo de verdade, para que pudessem enxergar seus sentimentos. O problema é que nem todos estavam dispostos a esse esforço, por isso acostumou-se a ficar sozinho. Queria mudar isso.

- E então? O que gosta de fazer?

- Eu adoro fotografia, é meu passatempo preferido.

- Você já fez algum curso?

- Não. Geralmente, são caros. Eu aprendo muita coisa lendo livros e o resto... bem, é só se deixar levar pela beleza das coisas que existem. O mundo é fantástico.

- Eu não penso assim.

- Por que não? - A garota franziu o cenho.

- Você é muito ingênua. O mundo é cruel e injusto. As pessoas são cheias de interesse, cheias de hipocrisia. Elas não se importam com os outros, pisam em cima de qualquer criança passando fome na rua somente para chegar em casa e ver o capítulo inédito da novela das oito. Então, quando um caso terrível passa no jornal, elas dizem que é um absurdo e exigem que sejam tomadas providências. Milhares de crianças morrem todos os dias e ninguém nem se importa, mas quando uma delas é de classe alta e o crime vira caso de televisão, é motivo para que todos se digam sensibilizados e indignados. Muitos usam isso só para aparecer. - Alex sorriu. - No caso do meu pai, ele usa isso pra conseguir votos.

- Você está errado, senhor. - Foi a vez dela sorrir. - Existe muita coisa bonita no mundo, a gente é que ignora. Quantas vezes você já parou pra observar o que existe de bonito em volta de você? Quantas vezes já admirou paisagens no trajeto da sua casa ao colégio?

- Várias vezes. - Ele jogou os ombros para trás. - Só vejo lixo e poluição. Não tem nada de bonito nisso.

Milla levantou-se e estendeu uma das mãos.

- É porque você não olhou para o lado certo. - Abriu ainda mais o sorriso. Alex olhou para a mão estendida da garota, hesitou. Era muito desconfiado, mas estava querendo ver onde aquilo iria chegar. Deveria dar uma chance à garota, ela parecia diferente dos demais. Pegou na sua mão e a deixou guiá-lo.

~Ѽ~

Mellanie olhou para os lados, suspirou fundo. Sentiu o reconforto que se espalhava no seu peito, fechou os olhos e sorriu. Era como se estivesse em casa, era como se não sofresse mais, era como se estivesse completa. Contemplou as paredes coloridas da sala em que estava, pegou um dos pincéis que estava em uma das gavetas, encarou-o, era como se nunca tivesse sido ferida. Olhou para uma das telas em branco que estava encostada em um cavalete cor mármore. Muitos veriam somente branco, ela via muito mais.

A verdade é que todos eles eram profundamente feridos e incompletos, sentiam uma dor letal, um vazio imenso, só que não demonstravam isso. Suas maneiras de agir era somente um jeito de esconder o quanto aqueles jovens eram infelizes. O luxo e a futilidade não lhes trazia a felicidade que procuravam, mas, de alguma forma, ajudava a esconder o buraco que levavam em si. Porém, ali, Mellanie não precisava mais fingir, não precisava mais esconder as fraquezas que tinha, que corroíam cada parte do seu ser. Não precisava fingir que estava tudo bem, porque a arte nunca revelaria mentiras. A arte é a Deusa da verdade, nenhum sentimento poderia ludibriá-la.

Mellanie lembrou-se do último dia das férias de verão, mas não queria se lembrar. As lembranças mais recentes só cavariam ainda mais profundo o buraco que carregava em si. Abriu a sua mochila, retirou uma latinha pequena, de metal. Pegou um dos comprimidos brancos que estava lá dentro, hesitou. Olhou para os lados novamente, não viu ninguém. Procurou por algo, "água" pensou. Precisava de água para engolir, mas talvez... agora não fosse o momento. Talvez, estivesse ocupada demais agora. "Agora não", disse para si mesma. Guardou a pílula na caixinha, escutou um barulho.

- O que é isso? - Uma voz fina e fria entrou pela sala de artes plásticas.

- O que você quer, Mandy? - Mell, recompondo-se, retrucou com a maior frieza e força que conseguiu. Não tinha dito nada à Vitória, não diria nada à Amanda e muito menos a deixaria perceber suas fraquezas. Ela era como uma fera selvagem que sentia o cheiro da presa mais fraca.

Tarde demais. Mandy percebeu os olhos molhados dela, viu o susto que ela tinha tomado e o desespero em guardar a caixinha prateada de volta na mochila. Sentou-se na cadeira do lado da mesa de onde estava a mochila de Mellanie. Não desistiria tão fácil.

- O que acabou de esconder, fofinha? - Mandy arregalou os olhos e olhou para Mel como se tirasse um raio-x dos seus pensamentos. - Pode confiar em mim... - Deixou a voz ficar adocicada. Mel não era assim tão estúpida.

- Eu não escondi nada. É só uma caixa com balas. - Retirou a caixinha da mochila e, sem abrir a tampa, a sacudiu por um momento. Mandy escutou o barulho de esferas batendo nas laterais metálicas. Olhou desconfiada, não acreditou nem um pouco, mas iria investigar isso depois. Agora estava com outro pensamento na cabeça, mas fez uma anotação mental para não se esquecer disso mais tarde. Não iria deixar Mellanie, a melhor amiga da sua maior rival, sair dessa, assim, tão fácil.

- Ah! É claro. - Sorriu amarelo enquanto piscava os olhos enormes freneticamente.

- O que você disse que queria mesmo? - Mellanie tentou mudar o assunto.

- Eu não disse! - Continuou sorrindo e virou o olhar para uma das prateleiras da sala. Mellanie suspirou. Não tinha paciência com aquela falsidade toda, mas se esse era o jogo, era melhor jogá-lo de uma vez.

- Então... Mandy, como posso ajudá-la? - Forçou a simpatia.

- Eu estava aqui... A imaginar com os meus botões se você não teria um pedaço de pano para me emprestar. Uma inútil sujou a minha blusa hoje, olha. - Apontou para a marca roxa minúscula que estava na blusa. - Então pensei, - Mel riu debochada, mas calou-se quando Mandy voltou os olhos grandes para ela - qual criatura desocupada nesta escola teria pedaços de pano sem valor destinados a limpar sujeira? Primeiramente, pensei em um dos faxineiros, mas você sabe, Melzinha, que não sei falar a língua deles e também não quero um pano que já tenha sido usado para limpar o chão. Então, me veio à mente a segunda opção: você! - Sorriu de orelha a orelha, como se tivesse acabado de falar um elogio enorme.

- Ah... Estou lisonjeada! - Respondeu a menina dos cabelos escuros, com toda ironia que conseguiu juntar nesse pouco tempo. Naturalmente, estava pouco se lixando com a marca de suco de uva na blusa da loira intragável. Sua maior vontade naquele momento era dizer "O problema é seu, dane-se", mas aquele era seu santuário, ali era o local no colégio onde mais se sentia bem, era a primeira vez que entrava ali em semanas e Mandy a estava incomodando. Era mais fácil entregar logo para ela qualquer pano que encontrasse e despachá-la dali o quanto antes. - Eu acho que tenho o que você precisa. O departamento de artes recebeu, neste ano, um estoque de toalhas novas para limpar os pincéis e os outros utensílios... Hum... Vou pegar uma delas no depósito para você, espere aqui.

Mel pegou as chaves do depósito, abriu uma porta que ficava na lateral da sala de artes e entrou na salinha pequena, mas bem organizada. Avistou uma pilha de toalhas brancas do lado de uma caixa cheia de pincéis novos, pegou uma das que ainda estavam embrulhadas no plástico. Sentiu uma pontada de sentimento ruim, deu de ombros. "Que mal isto pode fazer?" perguntou a si mesma. É claro que não tinha sido escolhida como monitora do departamento de artes plásticas para distribuir toalhas novinhas à qualquer fresca com uma mancha roxa do tamanho de uma cabeça de afinete estampada na blusa, mas ninguém iria sentir falta de uma toalhinha. E, se fosse preciso, ela mesmo comprava outra dúzia de toalhas depois. "Desde que faça ela sumir logo daqui...", faria qualquer coisa. Voltou à sala anterior.

- Aqui está. - Disse sem emoção nenhuma e entregou o pacote nas mãos de Mandy.

- Muito obrigada, fofinha! - Mandy deu o costumeiro sorriso falso. - Você sabe como é, minha blusa é caríssima e pertence a um estoque especial e raro, não quero que fique manchada assim! Tenho um produto importado da Alemanha, é ótimo, que você carrega na bolsa para esse tipo de emergência e então coloca uma gotinha em um pano limpo, dá uma esfregadinha e isso evita que a mancha fique grudada. Você sabe, não é fofinha? Se eu mandar uma das minhas blusas novas para a lavanderia especializada que minha mãe paga, generosamente, em dólares todos os meses e eles não conseguirem tirar essa sujeirinha, é bem possível que mamãe feche o estabelecimento! E a Melzinha sabe como eu sou caridosa, não sabe? - Usou o tom que usaria para dar um ossinho para seu bichinho de estimação. - Não quero deixar os pobres coitados que lavam as roupas na rua, se não... como iriam tomar banho? Imagina que nojo?

Mel fechou os olhos tentando manter a calma. Sabia que se fosse levada pela raiva e gritasse todos os xingamentos que já tinham inventado até hoje, o máximo que conseguiria seria prolongar ainda mais a estadia indesejável da loira. E, isso, seria como dar um tiro no próprio pé.

- Quer mais alguma coisa? - Perguntou na esperança de que ela entendesse a subjetividade das palavras e fosse embora logo.

- Não. - Respondeu, friamente, percebendo o convite a se retirar. - Bem, preciso ir... Tenho coisas a fazer, queridinha. - Levantou-se e saiu com a mesma elegância com que havia chegado.

Mel suspirou novamente. Como era bom se livrar daquela presença ruim, um alívio. Era como retirar o herege do templo sagrado. Poderia voltar, finalmente, a se concentrar na arte. Pegou um lápis e foi em direção à tela em branco, "espera!" gritou uma voz na sua cabeça. Mel olhou para os lados, procurou o que causou o alerta da sua consciência. Então, por fim, percebeu o que estava errado. Algo estava faltando.

~Ѽ~

- Isso é um absurdo! - Bianca reinvindicou enquanto deu um tapa na mesa do diretor. - Eu fui a vítima! Fui agredida verbal e fisicamente na frente de todos e agora também tenho que comparecer à detenção?

- Já dizia a minha avózinha, que Deus a tenha, "Quando um não quer, dois não brigam". É preciso duas pessoas para começar uma briga, Srta. Bittencourt!

- Mas Senhor Diretor! - Reclamou a garota, ainda de pé, indignada com tal fato. - Eu fui vítima de preconceito racial!

- Srta. Nakaíme, por que foi racista com ela? - Os dois viraram-se para encarar a japonesa, sentada, despreocupadamente, em uma das duas cadeiras estofadas que ficavam em frente à mesa do diretor. Ela brincava com um mini-globo, réplica em miniatura do planeta Terra, de vidro e preenchido por água que era objeto de decoração da mesa.

- Não fui racista com ela, papai. - A japonesa retrucou entediada, ainda com o objeto esférico entre os dedos.

- Como não?!? - Descontrolou-se Bianca.

- Eu só te chamei de "neguinha". - Os dois olharam para ela, incrédulos, esperando o que viria a seguir. - Ué! Você é o quê? Quer dizer que se você me chamar de "branquinha" ou de "japinha" eu vou vir aqui reclamar que me discriminou? Ah, não faz drama!

- Está vendo isso? - Esganiçou a outra. - É inaceitável!

- Olha aqui, "honey", eu te chamei de neguinha, foi você que levou isso como algo ruim. Quem está sendo racista aqui? Eu ou você? E mais, você é racista com você mesma, porque se achasse bom ser negra, aceitaria seu cabelinho ruim e pararia de fazer escova pra tentar parecer alguém branco. Mas a gente pode pular logo essa parte, papai? Quero saber logo o castigo porque eu não tenho o dia todo pra discursos de moral não. E aí? Qual vai ser?

- Aqui no colégio sou seu diretor, não o seu pai. Isso que você fez foi péssimo, racismo é crime. - Ela nem olhou para ele enquanto ele falava. - Pois muito bem, depois de ouvir as duas, decidi dar 4 dias de detenção à Srta. Bittencourt - Bianca cruzou os braços indignada - e um mês de detenção à Srta. Nakaíme. - Ela pareceu um pouco mais satisfeita depois disso. - Lembro que a Mellanie comentou comigo que precisava de uma pessoa para ajudá-la a organizar o departamento de artes para receber os alunos depois das férias, portanto, Srta. Bittencourt, sua detenção será auxiliá-la nessa tarefa.

- E ela? - Perguntou Bianca, querendo ter certeza de que Michelle não saíria ilesa dessa.

- Vou ver como ela pode ser útil ao colégio no próximo mês, pode deixar. - Bianca deixou a decepção espalhar-se em sua face. - Agora vocês devem ir - olhou o relógio - já está quase na hora do intervalo cultural! Vão!

Bianca levantou-se, impacientemente, e saiu sem olhar para trás, Michelle continuou olhando para o mini-planeta, depois saiu sorrindo.

~Ѽ~

Camilla sentiu-se livre pela primeira vez no ano. O resto do mundo não existia, seus problemas não existiam, nada mais existia senão ela, a moto vermelha e seu dono. Os dois estavam andando no limite máximo de velocidade em uma estrada afastada, ela abriu os braços, feliz. Se o capacete não fosse algo tão importante, teria gostado de sentir seus cabelos voando contra o vento. Mesmo com a brisa forte, não conseguia fechar os olhos. Ela estava com medo de acordar e ver que nada daquilo estava mesmo acontecendo.

- É aqui, pode parar! - Gritou ela para o motorista.

Alex freou vagarosamente, desceu da moto e ajudou-a a descer também. Camilla olhou ao redor, estavam exatamente onde queria. Alex jogou os cabelos ao vento e contemplou a paisagem, estavam na beira de um penhasco, perto da praia. Ali, podia-se ouvir claramente o barulho das ondas batendo nas rochas, o sol estava se pondo. O dia tornou-se em um tom avermelhado, era lindo. Para ela não foi suficiente, guiou-o até o ponto mais alto do lugar, onde a vista era ainda mais chocante.

Eles subiram algumas rochas em direção ao barulho das ondas, Alex percebeu que estavam chegando perto do oceano. Quando finalmente chegaram até onde ela queria, ele sentiu algo que nunca sentira antes, era um calor inexplicável. Olhou satisfeito para ela, seus olhos brilharam. Milla sabia o que estava prestes a acontecer, fechou os olhos e se aproximou lentamente do garoto. Algo inexperado acontecera, a última coisa que viu foi a água, de um tom azul muito escuro, entrar pelos seus ouvidos.

~Ѽ~